terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Afinal, ninguém nunca entende.

Comprou um dicionário, queria aprender novas palavras. As que ele tinha já não eram suficientes para dar cabo aos tantos pensamentos que na sua mente surgiam. Isso aconteceu numa quinta feira de janeiro, quando descobriu que não sabia pensar certas coisas, pois não conhecia as palavras certas. Chegou à conclusão que era inteligente quem conhecia muitas palavras e sabia pensar coisas difíceis com palavras difíceis.

Assim o fez. A leitura do dicionário se tornou obrigatória em seu cotidiano. Não passou um dia daquele ano sem que lesse, pelo menos, duas páginas de palavras. Para não correr o risco de, pelo entusiasmo da empreitada, fazer com que o dicionário acabasse logo, escolheu um grande - em tamanho e em número de vocábulos.

E começou a tentar aplicar as palavras novas em todas as situações, cabíveis e incabíveis. Na escola até que tubo bem, o problema é quando cumprimentava seus pais no café da manhã, de uma maneira tão culta e incompreensível que estes começaram a pensar em alguma espécie de distúrbio. Não seria caso de levar ao médico? Não pode ser normal esse menino sair falando essas palavras estranhas de um dia para outro.

E a coisa foi ficando séria.  A dificuldade de comunicação era tanta que mesmo os professores de português não conseguiam mais compreendê-lo. A comunicação só era possível quando o interlocutor utilizava, também, um dicionário para decodificar sua fala.

Na cabeça dele estava tudo bem. Ele já conseguia pensar com essas palavras difíceis. Não importava o conteúdo dos pensamentos. O importante era utilizar, onde quer que fosse, essas palavras que surgiam a cada segundo como uma avalanche de felicidade. Não importava, muito menos, se as pessoas compreendiam ou não. Se não compreendiam, era devido à ignorância delas, não tinha nada com isso. É um grande absurdo termos um idioma com tantas palavras e elas ficarem esquecidas, simplesmente, pela preguiça de pensar que as pessoas têm, argumentava ele em palavras que o autor do texto não consegue rememorar, por estarem fora do seu vocabulário.

Os pais estavam decididos, era caso de psiquiatra. Queixa principal: nosso filho criou uma língua nova e não conseguimos mais conversar com ele. O doutor, após longo período de conversa com os pais aflitos, decidiu por ter uma consulta particular com o menino. Estava boquiaberto. Simplesmente nunca houvera tido contato com um distúrbio desse tipo. Em toda sua vasta literatura nenhuma referência fora encontrada com sintomatologia semelhante a do jovem. Não tinha outra conclusão, era uma doença nova e precisava de uma melhor avaliação. O que mais intrigava o médico era a capacidade do garoto compreender tudo que lhe era dito, apesar de se fazer incompreensível quando falava.

No retorno da consulta, o psiquiatra ainda impressionado, resolveu munir-se de nova estratégia e começou também ele, a usar um dicionário. A cada palavra que o garoto falava ele pedia pausa e, rapidamente, saia em busca do termo. Às vezes o garoto precisava soletrar, mas todas estavam lá, para incredulidade e surpresa geral. Depois de longa avaliação, o médico decidiu que não era caso de internação ou de uso de medicamento. A solução era privar o menino do contato com aquele que fora o culpado de todo o transtorno. Tudo estaria resolvido em menos de dois meses e as palavras normais iriam voltar, progressivamente, a sua memória.

E assim fizeram os pais. O garoto sofreu no início, mas as palavras não saíram da sua mente, nem nunca sairiam, pois ele já aprendera todas e elas tinham se tornado suas melhores aliadas quando o assunto era falar o que ele queria, sem que ninguém entendesse. Pois assim tinha decidido viver sua vida: dizendo o queria, sem nenhuma preocupação em fazer com o que outros entendessem. Afinal, ninguém nunca entende.

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